quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

bordando os dias (V)





Dos pontos que eu faço o que me parece mais sofisticado é o matiz. Aprendi a bordá-lo no Liceu com a minha professora de lavores, a Dª Angélica. E faço-o muito bem, o resultado parece uma pintura, passe a imodéstia. A minha irmã mais velha sabe todos os pontos dos mais simples aos mais complicados. Um que mais atraía a minha atenção era o crivo, talvez pela dificuldade que eu lhe adivinhava. Ela tinha uma saia branca toda bordada à volta. Bordava e cantava, nas horas vagas. E ainda canta, mas não tanto. Tem uma voz maviosa. Aprendi com ela "As saudades que eu já tinha da minha linda casinha" e muitas outras canções que ela aprendera com a nossa mãe, entre elas, muitos fados da Amália. E ela, com o seu ouvido apurado ensinou-me, a mim e ao Manel, irmão mais novo, a mudar as posições das notas da viola, conforme os tons, enquanto fazia sair das suas mãos autênticas obras de arte. Voltando ao meu pano, e partindo do crisântemo, resolvi bordar as outras flores percorrendo as cores do arco-íris. Os ramos, nos mais variados tons de verde. E apesar de gostar de estar aqui sentada à porta a apanhar o ar da manhã, hoje vou entrar mais cedo. O tempo promete chuva, graças a Deus. Venha ela mansa e benfazeja. 

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Imagem: daqui

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

bordando os dias (IV)




Vejo que os animais de estimação da vizinhança também gostam desta sombra, embora o Sol esteja, agora, um pouco fugidio. No outro dia foi o tal cão que no fim até me falou, agora é um gato com um amarelo torrado muito bonito. Tem o pêlo lustroso, vê-se que é muito bem tratado. Ele costuma estar no parapeito de uma janela no outro quarteirão. Nunca me ligou nenhuma, muito senhor do seu nariz. Hoje aqui está ele como se nos conhecêssemos de longa data. Em sua honra escolho uma linha do seu tom para bordar uma florzinha que me parece um crisântemo. Tenho uma concunhada que se chama Crisanta. Ou Crisântema? Nunca vi o nome dela escrito. Pronto, acabei a flor. Fiz ponto de cadeia. Geralmente só faço pontos de fantasia. Alisei-a, mirei-a e gostei. O gato, num pulo, saltou-me para o regaço. Deixei cair a agulha e ainda bem. Aninhou-se. Veio-me à lembrança um outro, dos dias da minha juventude. Acordara assustada com ele a passar-me pelo rosto. Deixara-me uma arranhadela entre as sobrancelhas que ainda se nota. Olhando para este que ronronava no meu colo, senti os meus lábios distenderem-se num sorriso ternurento. Momento azado para fazer as pazes com estes felinos. 

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Imagem: daqui

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

bordando os dias (III)





Descobri hoje que bordar é como fazer nascer algo de muito especial. Realmente é muito agradável ver como as flores, as folhas e os ramos vão surgindo à medida que bordo. Mal comparando, é como se fosse a tela de um pintor que, com a sua arte, faz aparecer vida e movimento. Sei que o dia está um pouco frio mas mesmo assim sinto-me reconfortada. O dedal não me assenta bem no dedo, parece-me um pouco largo e também curto, já lhe meti um pouco de tecido, continua a querer sair. É melhor tirá-lo. Com o polegar e o indicador seguro a agulha procurando não fazer muita pressão no médio para não me magoar. Isto para dizer que quero ver o resultado deste raminho, tal o entusiasmo. Ai, o tempo passa tão depressa. 
-Olhó viziiinho! :)
-Ó vizinha, bom dia, como vão esses bordados?
-Ah, os olhos já não ajudam muito. E as suas couves? O seu quintal está viçoso.
-Ia agora colher umas couvinhas para a minha mulher. Também quer? 
-Sim, muito obrigada. Aproveito e faço um caldinho verde para o almoço. Olhe, está na minha hora. Tenha um muito bom dia. 

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Imagem:daqui

domingo, 25 de fevereiro de 2018

bordando os dias (II)




Concentrando-me, enfiei a linha na agulha. O fio não podia ser nem curto nem comprido. Curto, acabaria num instante forçando-me a remates desnecessários que depois podia pôr em causa a boa apresentação do avesso. Muito comprido, havia o perigo de acontecerem os temidos nós que fariam com que eu tivesse de cortar a linha e reiniciar o trabalho. E mais remates. Entregue a esses detalhes notei que a sombra da casa que, em colaboração com o Sol, me servia de relógio já vinha avançando em direcção ao meu banco, sinal de que estava na hora de ir tratar do almoço. Pelo rabo do olho notei mais uma sombra, uma sombra diferente. Levantei os olhos e deparei-me com o cão do Mar Arável, impávido e sereno. 
Olá! estás aqui? Por onde tens andado? 
Não me respondeu como é natural: ele é de barro ou de louça, já não sei bem. Também não me lembro do seu nome. Peguei na bengala para subir os dois degraus, resolvendo-me a entrar. E disse-lhe: 
Vai para casa! 
E ele respondeu-me muito depressa: 
- Estou muito bem aqui. 


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Imagem: daqui
Mar Arável - blogue

sábado, 24 de fevereiro de 2018

bordando os dias (I)




Sentei-me no banco à porta de casa, como de costume. O cestinho, com o pano e as linhas, pu-lo no chão do meu lado direito. Pus as lunetas, peguei no pano que queria transformar num pano de chá. Já tinha feito o debuxo com todo o cuidado. Não tendo papel químico, que já vai rareando, fi-lo à moda antiga. A minha provecta idade permite-me conhecer esses truques. Uma toalhinha já muito usada a precisar de ser substituída foi donde tirei as flores e ramos. Estendi-a em cima da mesa e, por cima, coloquei muito bem esticadinho o pano por bordar. Passei, suavemente, a colher que reservo para esse efeito nos meus cabelos mais ao nível do couro cabeludo. A seguir fiz pressão com ela sobre o bordado, tantas vezes foram precisas. Aos poucos foram aparecendo os desenhos. No fim, passei com um lápis os bordos dos ditos flores e ramos. E, pronto. Agora vou escolher as linhas ou então o melhor é seguir a inspiração, de acordo com os sentimentos e a disposição de espírito. Ouvi dizer que cada cor tem o seu significado. Mas não vou por aí. Não irei à procura de definições consagradas. Mais vale olhar com olhos de ver e seguir o coração. 

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imagem: daqui

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

ZECA AFONSO




DOCUMENTÁRIO
"Não me obriguem a vir para a rua gritar"




1929-1987

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Ser poeta


Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior 
Do que os homens! Morder como quem beija! 
É ser mendigo e dar como quem seja 
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! 


É ter de mil desejos o esplendor 
E não saber sequer que se deseja! 
É ter cá dentro um astro que flameja, 
É ter garras e asas de condor! 

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito! 

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente! 
in "Charneca em Flor" 

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Poema: Citador

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

aguenta, santa bárbara!




Fevereiro soalheiro. Faz-me lembrar um outro, por oposição a este:
Chovia a potes. Não fazíamos ideia donde vinha tanta água, tanta trovoada. Elas ribombavam de tal modo que sentíamos a trepidação dentro do nosso próprio corpo. Escureceu, estava um nevoeiro inconcebível que só deixava adivinhar e mal as poderosas e altíssimas rochas do Tabuleirinho. Os relâmpagos cruzavam os céus sem cerimónia. Diz-se que eles vêm antes dos trovões mas nós, dentro da casa quase suspensa, não tínhamos noção da ordem das coisas. Sabíamos que lá em baixo, no vale, era a casa e a propriedade da nossa tia e que corríamos o risco de ir lá parar e da pior maneira. Por isso, só podíamos gritar por Santa Bárbara, a padroeira dessas horas de aflição. António, o meu irmão mais velho, pouco dado a essas crenças fez um riso de escárnio. Nisto, ouve-se um barulho que não augurava nada de bom. E percebemos do que se tratava: um pouco acima ficava uma grande ladeira e aquilo era uma quebrada, isto é, pedregulhos, pedras e pedrinhas, terra e lama, troncos e ramos de árvores vinham por aí abaixo em nossa direcção numa velocidade louca. E o António, no auge do desespero, espavorido, gritou: Agueeeenta, Santa Bárbara!

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Imagem: daqui

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Fado Português




O Fado nasceu um dia, 
quando o vento mal bulia 

e o céu o mar prolongava, 
na amurada dum veleiro, 
no peito dum marinheiro 
que, estando triste, cantava, 
que, estando triste, cantava. 

Ai, que lindeza tamanha, 
meu chão , meu monte, meu vale, 
de folhas, flores, frutas de oiro, 
vê se vês terras de Espanha, 
areias de Portugal, 
olhar ceguinho de choro. 

Na boca dum marinheiro 
do frágil barco veleiro, 
morrendo a canção magoada, 
diz o pungir dos desejos 
do lábio a queimar de beijos 
que beija o ar, e mais nada, 
que beija o ar, e mais nada. 

Mãe, adeus. Adeus, Maria. 
Guarda bem no teu sentido 
que aqui te faço uma jura: 
que ou te levo à sacristia, 
ou foi Deus que foi servido 
dar-me no mar sepultura. 

Ora eis que embora outro dia, 
quando o vento nem bulia 
e o céu o mar prolongava, 
à proa de outro veleiro 
velava outro marinheiro 
que, estando triste, cantava, 
que, estando triste, cantava. 

in 'Poemas de Deus e do Diabo' 

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Poema: Citador

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Era uma vez um Pinhal...

Ao 
ARGOS



Tem o nome de Pinhal de Leiria. Tantos e tantos anos ali, quase tantos como os da nossa independência e a assumpção da nossa identidade como povo. Diz esse mesmo povo e livros de História da instrução primária e não só que o dito Pinhal foi mandado plantar pelo rei D. Dinis e por via disso ficou conhecido na História de Portugal com o cognome de "O Lavrador". 

Mas aconteceram duas coisas que vêm desestabilizar a história do dito Pinhal: 1º. - consta que afinal não foi D. Dinis quem mandara plantá-lo, antes poderá ter mandado substituir os pinheiros mansos por pinheiros bravos; 2º. O Pinhal de Leiria ardeu em 80% da sua área nos incêndios de 15 de Outubro de 2017. 

Mas há esperanças na sua revitalização. A área vai receber 70 mil pinheiros e junta 20 mil pessoas a 17 de Março próximo, para o efeito, diz o jornal Região de Leiria.

Assim seja!

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veja aqui:
Notícia aqui
Opiniões de Cristina Torrão aqui e aqui
O seu livro: "D. Dinis - A quem chamaram
O Lavrador" 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

el mundo continúa rodando, pero...



Voltarei em breve.
Entretanto, ouçamos os Poetas Andaluces




¿Qué cantan los poetas andaluces de ahora?
¿qué miran los poetas andaluces de ahora?
¿qué sienten los poetas andaluces de ahora?

Cantan con voz de hombre
pero, ¿dónde los hombres?
Con ojos de hombre miran
pero, ¿dónde los hombres?
Con pecho de hombre sienten
pero, ¿dónde los hombres?

Cantan, y cuando cantan parece que están solos
Miran, y cuando miran parece que están solos
Sienten, y cuando sienten parece que están solos

¿Qué cantan los poetas, poetas andaluces de ahora?
¿Qué miran los poetas, poetas andaluces de ahora?
¿Qué sienten los poetas, poetas andaluces de ahora?

Y cuando cantan, parece que están solos
Y cuando miran, parece que están solos
Y cuando sienten, parece que están solos

Y cuando cantan, parece que están solos
Y cuando miran, parece que están solos
Y cuando sienten, parece que están solos

Pero, ¿dónde los hombres?

¿Es que ya Andalucía se ha quedado sin nadie?
¿Es que acaso en los montes andaluces no hay nadie?
¿que en los campos y mares andaluces no hay nadie?

¿No habrá ya quien responda a la voz del poeta,
quien mire al corazón sin muro del poeta?
Tantas cosas han muerto, que no hay más que el poeta

Cantad alto, oireis que oyen otros oidos
Mirad alto, vereis que miran otros ojos
Latid alto, sabreis que palpita otra sangre

No es más hondo el poeta en su oscuro subsuelo encerrado
Su canto asciende a más profundo, cuando abierto en el aire
ya es de todos los hombres

Y ya tu canto es de todos los hombres
Y ya tu canto es de todos los hombres

Y ya tu canto es de todos los hombres
Y ya tu canto es de todos los hombres (bis)





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Imagem: daqui
Video e letra : Youtube e Vaga lume

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Versos de amor, histórias de amor,


A folha da oliveira deitada no lume estala assim
é meu curação quando para ti não fala



Aqui tens meu curação 
E a chabe pró abrir
Num tenho mais que te dar
Nem tú mais que me pedir 



Dei um lenço ao meu amor
pra ele assoiar o pingo
gostou tánto tánto dêle
que só seaçoia ao domingo





Este não é tema novo. Todos nós conhecemos os lenços dos namorados. Mas, diz quem sabe que se trata de ritual de conquista no feminino, sendo que:

A tradição dos Lenços dos Namorados inspira-se nos lenços senhoris dos séc. XVII ou XVIII adaptados e tornados populares pelas mulheres do povo. Os motivos usados pertencem à simbologia tradicional da cultura minhota e integram elementos religiosos. As palavras e frases reproduzem a oralidade com características populares que os tornam ainda mais peculiares e interessantes.Actualmente o Lenço dos Namorados é classificado e certificado como uma peça de artesanato genuína da região minhota que integra Viana do Castelo, Vila Verde, Telões, Guimarães e Aboim da Nóbrega.*

E, continuando com as nossas tradições queria recordar uma das histórias/lendas de amor: a lenda da Princesa Fátima. 




Fátima, jovem e bela princesa moura, era filha única do emir, que a guardava dos olhos dos homens numa torre ricamente mobilada, tendo por companhia apenas as aias e, entre elas, a sua preferida e confidente Cadija.
Apesar de estar prometida a seu primo Abu, o destino quis que Fátima se apaixonasse pelo cristão que seu pai mais odiava, Gonçalo Hermingues, o “Traga-Mouros”, o cavaleiro poeta que nas suas cavalgadas pelos campos via a bela princesa à janela da torre. Rapidamente o coração do cavaleiro cristão se encheu daquela imagem e sabendo que a princesa iria participar no cortejo da Festa das Luzes, na noite que mais tarde seria a de S. João, preparou uma cilada de amor.
No impressionante cortejo de mouras e mouros, montando corcéis lindamente ajaezados, Fátima era vigiada de perto por Abu. De repente, os cristãos liderados pelo “Traga-Mouros” saíram ao caminho e Fátima viu-se raptada por Gonçalo. Mas Abu depressa se organizou e partiu com os seus homens em perseguição dos cristãos e a luta que se seguiu revelou-se fatal para o rico e poderoso Abu. Como recompensa pelos prisioneiros mouros, Gonçalo Hermingues pediu a D. Afonso Henriques licença para se casar com a princesa Fátima, a que o rei acedeu com a condição que esta se convertesse.

A região que primeiro acolheu os jovens viria a chamar-se Fátima, mas a princesa, já com o nome cristão de Oureana, deu também o seu nome ao lugar onde se instalaram definitivamente, a Vila de Ourém. **

E, assim, sem tirar nem pôr transcrevi-a para aqui.

Para terminar esta maratona recomendo a todos os namorados paz e harmonia. A violência no namoro deve e tem de ser erradicada.


HOJE

Como sou minhoto, conheço bem a tradição (em desuso) dos lenços dos namorados, apesar de nunca ter sido objecto de qualquer exemplar...
Já a lenda era totalmente desconhecida e achei-a interessante. Conheço outra parecida em que a princesa moura (Floripes) casa com o rei cristão e ue ainda hoje é levada à cena anualmente por ocasião das festas das Neves (perto de Viana do Castelo) sob a forma de "Auto da Floripes".
Da net: "Representação popular que recua aos séculos XVI-XVII, integrando-se na romaria da Senhora das Neves, realizada todos os anos, nos primeiros dias de Agosto. Os intérpretes são gente da localidade, e o espectáculo - misto de pantomima, recitativo e bailado - desenrola-se ao ar livre, no largo fronteiro igreja, envolvendo cristãos e mouros.
Numa primeira parte, procede-se apresentação de Neves, aldeia do distrito de Viana do Castelo.
Segue-se a libertação do cavaleiro Oliveiros por Floripes, irmã de Ferrabrás, o turco; fugidos para junto do acampamento de Carlos Magno, este combate os otomanos, e derrota-os...
"

Jaime Portela trouxe-me há pouco este contributo que fica aqui muito bem.
Muito obrigada, meu amigo. Bom fim de semana e um

Abraço.

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Quinzena do Amor

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Lenços : aquiaquiaqui
* aqui
** daqui
imagem daqui

Penso em ti e dentro de mim estou completo



Pintuta de REMIGIO MEGÍAS

Vai alta no céu a lua da Primavera 
Penso em ti e dentro de mim estou completo. 

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira. 
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz. 

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo, 
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores. 
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos, 
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores, 
Isso será uma alegria e uma verdade para mim. 


Alberto Caeiro
In: O Pastor Amoroso
Heterónimo de Fernando Pessoa



No calendário a  Primavera ainda vem longe mas o dia apresenta-se, hoje, glorioso. Do quintal do vizinho vêm-me trinados em despique, numa homenagem à Natureza. Na verdade, belos são os campos, belo é o Universo. 

Alberto Caeiro é visto pelo seu criador como o "Mestre". E ele considera-se o poeta das sensações e estas, para ele, são a única realidade. Mas vejamo-lo aqui descrito por Fernando Pessoa-ortónimo:






Alberto Caeiro nasceu em Lisboa, em 1889 e morreu em 1915, mas viveu quase toda a sua vida no campo, com uma tia-avó idosa, porque tinha ficado órfão de pais cedo. Era louro, de olhos azuis. Como educação, apenas tinha tirado a instrução primária e não tinha profissão.
Como surgiu este heterónimo? Conta o próprio Fernando Pessoa que “se lembrou um dia de fazer uma partida a Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive.”
Quando Fernando Pessoa escreve em nome de Caeiro, diz que o faz “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever.”

Fonte: Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935, in Correspondência 1923-1935, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.
In: Casa Fernando Pessoa

Nota: Trouxe para ilustrar o último post, aliás o último poema, desta Quinzena do Amor, uma pintura de Remigio Megías. Encontra-se em Arte en venta com outras pinturas, que também estão à venda, com o título "Campos en primavera". A biografia do autor: aqui. Seja-me relevada a ousadia.

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Desde sempre em mim





Contente. Contente do instante 
Da ressurreição, das insônias heróicas 

Contente da assombrada canção 
Que no meu peito agora se entrelaça. 
Sabes? O fogo iluminou a casa. 
E sobre a claridade do capim 
Um expandir-se de asa, um trinado 

Uma garganta aguda, vitoriosa. 

Desde sempre em mim. Desde 
Sempre estiveste. Nas arcadas do Tempo 
Nas ermas biografias, neste adro solar 
No meu mudo momento 

Desde sempre, amor, redescoberto em mim.

Hilda Hilst 

(1930-2004)






Poetaficcionistacronista e dramaturga brasileira. É considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX.

Sobre esta autora veja aqui, no Xaile de Seda.

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Poema: Citador
in 'Preludios-Intensos para
 os Desmemoriados do Amor' 

Imagens:Net

SUL





Foi no Sul do meu olhar
que deste, aliviado
a palavra sémen
com que fizeste a fecundação
do nosso poema.

Vieste acordar-me o silêncio
com letras adormecidas
há tanto tempo
nas minhas entranhas
e, embevecido
mesclaste de branco
as minhas mãos
repletas de ternura.

Foi no Sul dos meus sentidos
que fizeste a luta solta
dos meus cabelos
e, ternamente, proferiste
a cantiga das palavras
qual novelo de emoções!

Chegaste, entusiasmado
aconchegando a tua boca
aos meus ouvidos
como se a Sul
a felicidade me rondasse
em jeito de borboleta
e me estimulasse a magia
do pólen presente nas rimas
do tempo já perdido.

Foi no Sul, no meu Sul
que abriste de par em par
a janela emoldurada
no limbo do nosso amor
onde mostraste a diferença
quando fizeste do meu colo
o ninho do nosso querer.

Blogue: Ausente do Céu


Inteligente, doce, tocante. Deixo-me embalar no canto das suas metáforas. Muito obrigada, querida Céu.




Para si, Júlio Eglésias & Dalida:





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Quinzena do Amor
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Imagens: Pixabay